Por Domicio Santos Neto e Vitor de Batista*
Atualmente, há na Lei brasileira, em sentido estrito, uma lacuna do que se entende por “produtor rural”. Essa lacuna, originada por meio da ausência de uma padronização conceitual, é responsável por impactar diretamente as transações em âmbito privado, principalmente, no que diz respeito ao mercado financeiro e de capitais voltado ao agronegócio. Isso porque a omissão legal pode gerar interpretações diferentes entre os agentes econômicos e os órgãos reguladores e, por consequência, ocasionar conflitos e insegurança no ordenamento jurídico brasileiro.
Dessa insegurança jurídica, alguns efeitos econômicos adversos podem ocorrer, por exemplo: (a) aos credores, pode haver um desencorajamento do investimento em razão dos riscos institucionais apresentados, como a descaracterização do “produtor rural” pelo órgão regulador responsável; e (b) aos tomadores de crédito, pode haver um cenário de dificuldade de acesso ao recurso no mercado e/ou uma elevação das taxas de juros em virtude do aumento do risco.
Daí, a importância de uma assessoria jurídica especializada no tema, com opiniões consolidadas e respeitadas tanto com os agentes econômicos, nacionais e internacionais, quanto com os órgãos reguladores. É válido esclarecer que, no Brasil, a definição por meio da Lei é de responsabilidade do Poder Legislativo, figurado pelo Congresso Nacional. Em outra mão, no âmbito regulatório do mercado financeiro e de capitais, a definição deverá ser observada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e pelo Banco Central do Brasil (BCB).
Para ilustrar a lacuna normativa mencionada, observamos, a seguir, importantes dispositivos legais que utilizam o termo “produtor rural” sem fornecer qualquer definição clara sobre ele. A título de exemplo, temos: (a) artigo 2º, I, da Lei 8.929, de 22 de agosto de 1994, que dispõe sobre a Cédula de Produto Rural (CPR); e (b) artigo 23, §1º, da Lei 11.076, de 30 de dezembro de 2004, que dispõe sobre os títulos de crédito agropecuários (Certificado de Depósito Agropecuário – CDA, o Warrant Agropecuário – WA, o Certificado de Direitos Creditórios do Agronegócio – CDCA, a Letra de Crédito do Agronegócio – LCA e o Certificado de Recebíveis do Agronegócio – CRA).
Neste ponto, destaca-se que a CPR, indicada no item (a) acima, é um importantíssimo título de crédito brasileiro que completa 30 anos em agosto deste ano (2024). Em suma, representa uma promessa de entrega futura de produtos rurais, que pode, além de ter liquidação física, isto é, a própria entrega em produtos, ter liquidação financeira, com amortização e juros monetários. Dessa maneira, a CPR com liquidação financeira, além de trazer mais dinamicidade e liquidez ao mercado brasileiro, serve como lastro para alguns valores mobiliários, como o CRA, emitido por securitizadoras, e a LCA, emitida por bancos. Para demonstrar a importância econômica desses instrumentos, temos que, segundo os dados oficiais do governo federal para abril de 2024 havia mais de: (a) R$ 330 bilhões em estoque de CPR registradas; (b) R$ 138 bilhões em estoque de CRA registrados; (c) R$ 469 bilhões em estoque de LCA registradas, um total bastante expressivo para economia brasileira.
Frente a essa situação de incerteza conceitual do “produtor rural”, que constitui a base do lastro para instrumentos de grande relevância econômica nacional, uma alternativa que tem sido utilizada pelos especialistas para superar a omissão legal é a aplicação, por analogia, da Instrução Normativa da Receita Federal do Brasil, nº 2110, de 17 de outubro de 2022 (“IN 2110”). Essa extensão é possível graças à Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (LINDB), que fornece diretrizes hermenêuticas para a interpretação das normas brasileiras. Todavia, válido destacar que, embora a IN 2110 seja utilizada, em âmbito prático, pode não satisfazer todas as carências das transações privadas de crédito e da livre iniciativa por ser infralegal e de caráter meramente fiscal.
Apesar dessas ressalvas, perante a norma tributária, entende-se que o conceito de “produtor rural” é uma qualidade atribuída à pessoa, que independe do fato de ser física ou jurídica. Nesse aspecto, considerando o “produtor rural” enquanto qualidade do sujeito, não há que se questionar a forma societária pela qual produtores rurais pessoas jurídicas é estruturada. Isso significa dizer que podem ser estruturadas sob qualquer uma das formas dos incisos do artigo 44 do Código Civil Brasileiro, entre eles, associações, incluindo cooperativas e sociedades limitadas ou anônimas. Desse modo, como a forma de estruturação societária não é óbice à qualificação do produtor rural, entende-se que o ponto crucial para essa caracterização é a análise da atividade econômica desenvolvida. Portanto, fundamental entender o que seria a “atividade de produção rural” para fins jurídicos, pois essa sim, inevitavelmente, será tida como a caracterizadora do “produtor rural” como demonstrado pela própria exegese da IN 2110.
Sob esse aspecto, embora existam inúmeras tentativas de tratar sobre a atividade rural, que vai do Direito Agrário ao Direito Tributário, falta-lhes coesão. Não bastasse, há também uma considerada dificuldade terminológica em âmbito jurídico. Isso porque a atividade de produção rural será vista, em alguns casos, como sinônimo para (a) “atividade agrícola”; (b) “atividade agropecuária, pesqueira ou silvicultural, bem como extração”; (c) “atividade agroeconômica”; (d) “atividade agrária”; (v) “atividade econômica rural”, entre outras. Entre as legislações possíveis, a Lei nº 8.212/91, de âmbito da seguridade social, é uma das principais referências legais para se entender a atividade de produção rural, por meio do art. 25, §3º, com redação dada pela Lei 13.986, de 7 de abril de 2020 (Lei do Agronegócio). Tem-se que a Lei nº 8.212/91 apresenta um rol não taxativo do que pode ser caracterizado como atividade de produção rural – embora não conceitue o “produtor rural”, mas que poderá servir de norte ao seu conceito.
A caracterização do produtor mediante a análise de sua atividade, por meio uma opinião fundamentada de especialistas no assunto, concedem maior segurança as transações em um cenário de incerteza e possibilita aos agentes econômicos, principalmente, aos que concedem e aos que toma crédito, mitigar riscos institucionais. Para finalizar, salienta-se que o mercado financeiro e de capitais brasileiro voltado ao agronegócio sofreu algumas alterações no início deste ano (2024) em razão das Resoluções do CMN nº 5.118, conforme alterada pela Resolução nº 5.121, e da Resolução do CMN nº 5.119. Essas resoluções criaram restrições à emissão de determinados valores mobiliários, entre eles, o CRA e a LCA, e geraram novas incertezas no cenário de crédito privado no país. Apesar disso, percebe-se uma retomada do setor com outras alternativas, como debêntures, CDCA e outros instrumentos de crédito também direcionados ao setor do agronegócio e com os quais abrem-se novas estratégias e estruturas de mercado.
*Domicio dos Santos Neto é sócio fundador do Santos Neto Advogados e responsável pelas áreas de Agronegócio, Bancário e Financeiro/Trade Finance, Comercial, Contratos, Contratos Internacionais, Criptoativos, Mercado de Capitais, Project Finance, Societário e M&A.
Vitor de Batista é advogado associado dos Santos Neto Advogados e atua nas áreas de Agronegócio, Bancário e Financeiro/Trade Finance, Contratos, Contratos Internacionais e Project Finance.